segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Preciosidades

Me sinto inútil por não poder escrever. Essas poucas palavras já me causam dor. Tenho uma dor física, aquela do corpo que falha devido ao cansaço, e uma dor interna, aquela dor que nem Clarice Lispector soube explicar: 

"- Porque você me pede tanta aspirina?
- É para eu não me doer.
-Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar." 

A hora da Estrela, Clarice Lispector.

Assim, meu único consolo é buscar nas palavras de outros o bálsamo que minha mente tanto necessita.

Entre o fogo e a derme

Como quem sopra
a própria pele antes
para você queimar
melhor, mais
eficaz. Com você,
os pontos da sutura
são auxílio ao corte.
Deito e observo
o prazer com que
você me desinfecta
para proteger,
contra minha tez,
os seus insetos.
Eis-me aqui,
querido, todo pós-
utópico depois
que você confunde
pela centésima vez
sulco e charrua
durante o sexo
ou seu exagero
em buscar no dicionário
antes de me tocar
a etimologia de palavras
como amortecimento.
Quando você fala,
arreganho os ouvidos
e olvidos e Ovídios
e respondo
à attention span
de peixe dourado
que você me dedica
em nossa vida de aquário.
Sei que devo soar,
aos seus ouvidos,
como um conjunto
de erratas e spam.
Resigno-me
como inseto extinto
preso em sua resina.
Os amigos sugerem
que eu deixe o cronômetro
vir coser os lábios
da ferida, enquanto
você seleciona
em random mode
por trilha-sonora
o sonzim dos meus ossos
que engranzam
sob o seu corpo.
Silêncio não
é costureira,
nem na Espanha
onde talvez haja
alguma que atenda
por Martírio ou Remédios,
como numa peça qualquer
de Lorca ou outra louca.
Sinto-me como uma Orca
justiceira ou uma Scarlett O´Hara
sem Tara.
Resta-me a esperança
que arqueólogos futuros
me descubram, soterrado,
fossilizado, esquecido
sob as suas vírgulas.
Hei de voltar, como um vírus
trancafiado nas tumbas
de Tutancâmon ou outra múmia,
devastarei paisagens e populações
à procura dos seus pulmões.


Ricardo Domeneck. Publicado originalmente na página mensal de poesia contemporânea do caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, a 15 de janeiro de 2011.

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